«A verdadeira finalidade de um ensaio clínico não é sempre óbvia
por Ben Goldacre, guardian.co.uk, Friday 1 July 2011 21.00 BST
“Ensaios semente” são os que promovem o uso de novos fármacos
Eis uma nova e interessante forma de distorcer ciência que encontramos esta semana nas páginas dos Archives of Internal Medicine (*). Imagine-se que queremos saber se um novo medicamento para a epilepsia, que já mostrou ser efetivo em ensaios rigorosos com doentes ideais devidamente selecionados, também resulta quando usado na clínica de rotina. A Epilepsia é frequente, pelo que a opção prática óbvia será escolher um conjunto de centros como clínicas de investigação onde recrutar participantes. Não será muito dispendioso e pode-se treinar facilmente os médicos e monitorizar adequadamente os dados. Assim se obtêm dados bons e respostas credíveis.
O ensaio Steps (Study of Neurontin: Titrate to Effect, Profile of Safety) sobre a gabapentina foi diferente. Em vez de recrutar muitos doentes de poucos centros, a companhia inverteu esse ponto principal. Porquê? Porque o ensaio Steps foi um estudo focado na comercialização e nada tinha a ver com o sentido clínico convencional: foi um “ensaio semente”, desenhado e aplicado pelo departamento comercial para promover o uso do fármaco ao induzir tantos mais prescritores em tantos mais locais quanto possível.
Enviaram-se cartas de recrutamento a 5000 médicos convidando-os a serem investigadores no ensaio. 1500 participaram numa reunião onde receberam informação e material promocional sobre o fármaco. Os médicos participantes como “investigadores” apenas puderam recrutar poucos doentes cada, em média quatro em cada local, sempre sob a supervisão dos delegados de informação da companhia.
Os investigadores receberam uma formação pobre e não tinham ou tinham pouca experiência em ensaios clínicos, não tendo havido qualquer auditoria antes do ensaio começar. Assim, os dados foram pobre, mas pior do que isso, os delegados de informação da companhia estavam diretamente envolvidos na recolha de dados, preenchendo os formulários e oferecendo brindes durante a recolha de dados.
Os ensaios semente têm estado frequentemente sob suspeita de falta de isenção mas é muito difícil de provar. No caso da gabapentina, sabemos o que passou, como frequentemente acontece, porque houve uma ação em tribunal, com milhares de memorandos, apresentações comerciais e ofícios internos registados em processo. Esta semana, três académicos – que foram consultores dos queixosos no litígio contra a companhia, dois dos quais pagos e um grátis – publicaram uma análise sistemática do processo.
Estes documentos descrevem francamente o ensaio como um instrumento de marketing. “O estudo Steps é a melhor ferramenta que temos para o Neurontin e devemos usá-la sempre que pudermos”, diz um memorando. Estas discussões não eram sobre os resultados: foram escritas durante o ensaio.
Além disso, embora a companhia tenha publicado dois artigos com base no Steps sobre se o fármaco era um bem em si mesmo, internamente produziram análises sobre os seus reais ganhos: se os investigadores do Steps prescreveram depois mais gabapentina (38% mais prescrições e também em doses mais altas). Como demonstração das suas prioridades, estas análises – o verdadeiro objetivo do ensaio – foram feitas antes de quaisquer resultados serem divulgados. Aliás nunca foram publicados.
Ninguém sabe quão comuns são estes ensaios semente. Pode haver presunções mas nunca o podemos confirmar com advogados: só as fugas e os casos de tribunal nos permitem ter certezas.
Nada disto é ilegal. Mas não é ético, tem sérias implicações na área do consentimento informado. Os doentes consentem participar, acreditando em que este ensaio era sobre os riscos e benefícios do fármaco. De facto era um estudo dos benefícios comerciais de um ensaio semente. E isso interessa? Bem, há o princípio do consentimento que é muito importante. Mas não só, este não é um fármaco imaculado: em 2759 pacientes, 11 morreram, 73 tiveram graves efeitos adversos e 997 tiveram efeitos secundários. A gabapentina não é um produto homicida, mas isto é mais sério do que ensaiar um novo tipo de papel higiénico.
E mais importante do que tudo, finalmente, se os médicos eram o verdadeiros sujeitos do estudo, eles não deram consentimento para participar. Assim, é difícil simpatizar com esta ostentação vazia e sem visão. ” Tudo bem, estamos realmente a ter grandes resultados com a gabapentina. Mas nunca disse que sou investigador nesse ensaio. Estamos a fazer um trabalho fascinante… “
• Este artigo foi emendado em 2 de julho de 2011. O original referia que a análise estava no Annals of Internal Medicine. Isto foi corrigido.»
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TRADUÇÃO ESPONTÂNEA DE R.A.