Epilepsia refratária

Epilepsia refrataria – o que é? Que exames fazer?

 

1. O que é epilepsia refratária?

Em cerca de um terço das pessoas com epilepsia, a medicação é insuficiente para um controlo adequado das crises epiléticas. Quando já foram tentados dois regimes de fármacos anticrises epiléticas, bem tolerados, em doses apropriadas, e considerados adequados ao tipo de epilepsia em questão e ainda assim as crises persistem, diz-se que a pessoa tem epilepsia refratária. Por vezes é utilizado como sinónimo o termo “epilepsia fármaco-resistente”.  

Há muitas causas diferentes de epilepsia e um dos principais objetivos da investigação é determinar essa causa em cada doente. Para se chegar a um diagnóstico correto e para se classificar adequadamente a epilepsia, o médico poderá solicitar exames complementares, incluindo análises, exames de imagem, eletroencefalogramas (vulgarmente designado EEG, um exame que permite registar a atividade elétrica do cérebro), entre outros. Existe um tipo particular de EEG, que é realizado em internamento, e que inclui a captura em vídeo dos eventos em estudo. Este exame designa-se “monitorização vídeo-EEG”. Os detalhes deste exame estão explicados mais abaixo.

Nos casos de epilepsia refratária, existem formas de tratamento não farmacológicas que podem ser propostas com o objetivo de curar a epilepsia ou, sempre que isso não for possível, de diminuir o número e/ou a intensidade das crises.  

2. Quais são os exames habitualmente pedidos num doente com epilepsia refratária?

Para se decidir se uma pessoa é candidata a um tratamento não farmacológico, e para definir qual a melhor estratégia a aplicar em cada caso, é necessária uma investigação detalhada com recurso a vários exames clínicos, neurofisiológicos, imagiológicos e neuropsicológicos.

  • Monitorização prolongada com vídeo-eletroencefalograma (EEG)

A monitorização com vídeo-EEG é um dos primeiros exames a ser requisitado neste processo. Este é um exame realizado em internamento numa Unidade de Monitorização de Epilepsia (UME).  Neste exame são utilizados elétrodos à superfície do couro cabeludo ou intracranianos para registar a atividade cerebral, ao mesmo tempo que as manifestações clínicas das crises podem ser capturadas em vídeo. Este é um procedimento que geralmente dura entre 24h e 2 semanas, dependendo da frequência das crises de cada doente e do objetivo da monitorização. Neste período, a medicação para a epilepsia pode ser suspensa ou reduzida para que ocorram os episódios em investigação. Para assegurar a segurança do exame, os doentes são supervisionados por uma equipa constituída por técnicos de neurofisiologia, enfermeiros e neurologistas, que garante uma intervenção atempada e auxílio durante crises. Se houver crises frequentes ou convulsivas generalizadas a medicação é ajustada.

 Com este exame é possível perceber se os episódios gravados têm uma relação temporal com alterações na atividade cerebral que está a ser registada no eletroencefalograma. Além de permitir perceber se os episódios que a pessoa tem são efetivamente crises epiléticas, este exame ajuda a clarificar o tipo de epilepsia em questão. Mesmo fora dos períodos de crise, o EEG prolongado permite obter informações importantes para a classificação da epilepsia e localização da área responsável pela geração de crises (o chamado “foco” epilético).

               Quando a atividade elétrica que gera as crises epiléticas tem origem numa área cerebral circunscrita, a monitorização com vídeo-EEG ajuda a perceber qual é a área do cérebro envolvida o que permite guiar o tratamento a oferecer ou a investigação subsequente.

  • Exames de imagem e de medicina nuclear

A ressonância magnética crânio-encefálica é um exame de neuroimagem que permite identificar áreas de cérebro anormais que poderão, potencialmente, ser responsáveis pelas crises epiléticas. As lesões responsáveis pelas epilepsias focais são muitas vezes pequenas e subtis podendo facilmente passar despercebidas. Assim, a ressonância magnética deve ser feita num aparelho de alta resolução, com protocolos específicos e deve ser analisada por um neurorradiologista com experiência na área da epilepsia. Em determinadas situações, pode ser realizada uma técnica designada ressonância magnética funcional, que permite identificar as áreas do cérebro responsáveis por funções importantes no dia-a-dia, como a capacidade de mover os membros ou falar, e ainda verificar a sua relação com a área cerebral anormal. Assim, é possível avaliar a segurança de uma potencial cirurgia com intenção curativa.

 A tomografia por emissão de positrões (PET) cerebral é um exame de medicina nuclear que mostra o consumo de glicose (açúcar) pelo cérebro. A tomografia por emissão de fotão único (SPECT) é um outro exame de medicina nuclear que permite avaliar o fluxo de sangue nas diferentes áreas do cérebro. Em ambos os exames são injetados fármacos capazes de marcar áreas de atividade cerebral anómala. Tanto o consumo de glicose como o fluxo sanguíneo podem estar alterados na zona do “foco epilético”, encontrando-se aumentados no período da crise. Assim, realizando estes estudos no período ictal (i.e., durante uma crise epilética) ou interictal (i.e., no período entre crises epiléticas) e analisando os resultados em conjunto com os restantes exames efetuados, pode obter-se pistas relevantes na identificação do “foco” epilético.

  • Avaliação neuropsicológica

Permite caraterizar o perfil cognitivo basal e é uma ferramenta adicional na identificação da zona responsável pela geração de crises epiléticas. Além disso, é necessária uma avaliação neuropsicológica pré-cirúrgica nos candidatos a cirurgia de epilepsia para caracterizar o funcionamento cognitivo (memória, linguagem, etc.) e estimar o risco associado ao procedimento em questão.

2.4. Exames neurofisiológicos intracranianos

Em cerca de um terço dos casos, considera-se que a investigação inicial é insuficiente para decidir se uma cirurgia ressetiva é adequada. Nestes casos é proposta uma investigação adicional, em que numa primeira cirurgia são colocados elétrodos no interior do crânio (na superfície das meninges e/ou na profundidade do cérebro). Nos casos em que é necessária investigação com elétrodos intracranianos, a decisão entre a utilização de elétrodos intracerebrais (“estéreo-EEG”), elétrodos subdurais, ou ambos, é tomada em reunião multidisciplinar e tem por base as características da zona cerebral potencialmente responsável pelas crises. Esta decisão é depois partilhada e discutida com o doente.

2.4.a. Elétrodos intracerebrais:

Esta é uma técnica minimamente invasiva, realizada no bloco operatório com recurso a anestesia geral, em que através de pequenos orifícios feitos no escalpe são colocados elétrodos filamentares no cérebro, que permitem registar a atividade elétrica à superfície e em profundidade. A colocação é feita por um método dito “estereotáxico”, empregando coordenadas tridimensionais para estimar o alvo e evitar vasos sanguíneos. Esta técnica é por vezes conhecida como “SEEG” (“S” de “stereotaxic”).  Depois da colocação dos elétrodos e de a equipa médica se certificar que estão reunidas as condições necessárias, o doente é transferido para a Unidade de Monitorização de Epilepsia onde, à semelhança do que acontece na monitorização com vídeo-EEG de escalpe, é registada a atividade cerebral em simultâneo com o registo vídeo. Além de se registarem crises epiléticas espontâneas, são realizadas sessões em que é aplicada uma quantidade muito pequena de corrente elétrica para provocar crises semelhantes às do doente; ajudar a mapear as áreas do cérebro responsáveis por funções importantes, como a linguagem ou a motricidade, que devem ser poupadas caso se prossiga para uma cirurgia com intuito curativo.

 

Imagem1: Múltiplos elétrodos intracerebrais hemisfério direito – imagem de fusão RM pré-implantação com TC pós-implantação, tratada digitalmente.

 

2.4.b. Elétrodos subdurais

Este procedimento também é realizado no bloco operatório com recurso a anestesia geral, no entanto, é feita uma abertura maior no crânio, designada craniotomia. São então colocadas fitas, ou uma grelha retangular, com vários elétrodos, à superfície do cérebro. Após a colocação dos elétrodos, o procedimento é semelhante ao que foi descrito para os elétrodos intracerebrais.

 

Epilepsia refrataria – tipos de tratamento

 

1. Que tipo de tratamento podem ser propostos aos doentes com epilepsia refratária?

As modalidades de tratamento a oferecer aos doentes com epilepsia refratária dividem-se em curativas e paliativas. Como o nome indica, as modalidades curativas têm como objetivo curar a epilepsia e permitir assim que o doente deixe de ter crises epiléticas. A única modalidade com intuito curativo é a cirurgia ressetiva. Mesmo quando não se consegue atingir o objetivo de curar a epilepsia, a cirurgia ressetiva aumenta a probabilidade de diminuir de forma substancial o número de crises ou a intensidade das mesmas.

As modalidades paliativas são propostas quando, pelas características da epilepsia, do “foco” epilético ou do doente em questão, não é possível oferecer uma cirurgia com intuito curativo. O principal objetivo das modalidades paliativas é diminuir o número e a intensidade das crises e aumentar assim a qualidade de vida da pessoa com epilepsia. Em casos raros, o doente poderá ficar sem crises epiléticas de forma sustentada.

Mais abaixo poderá encontrar informação acerca destas diferentes modalidades de tratamento.

1.1. Modalidade curativa: cirurgia ressetiva

Sempre que o estudo prévio identifique com segurança a zona que está a gerar crises epiléticas, e que os riscos associados ao procedimento sejam mínimos e considerados aceitáveis em relação ao benefício expectável, é proposta uma cirurgia com intuito curativo, designada cirurgia ressetiva, que consiste na remoção de uma área cerebral que inclui o “foco” epilético.

 A proposta cirúrgica é comunicada ao doente pelo seu médico assistente, que explicará também as possíveis complicações decorrentes da cirurgia, que podem variar ligeiramente caso a caso. No entanto, na maior parte das vezes, as complicações associadas à cirurgia são pouco graves e transitórias. Foram reportadas complicações minor (i.e., que resolveram completamente em 3 meses) em cerca de 5% dos doentes submetidos a cirurgia ressetiva e complicações major (ou seja, que se prolongaram além dos 3 meses) em 1,5% dos doentes.

A probabilidade de o doente ficar sem crises epiléticas a longo prazo varia consoante as estruturas cerebrais afetadas e a causa subjacente à epilepsia. Por exemplo, nos doentes em que é retirada parte do lobo temporal, a probabilidade de ficar sem crises epiléticas incapacitantes de forma sustentada (dois ou mais anos) é de cerca de 65%. Mesmo quando não é possível curar a epilepsia (i.e., ficar sem crises epiléticas a longo prazo e sem necessidade de utilizar fármacos anticrises epiléticas), a cirurgia ressetiva pode permitir que uma epilepsia que não respondia a fármacos fique controlada sob medicação ou, noutros casos, diminuir significativamente o número de crises.

Outras opções cirúrgicas em casos muito bem selecionados são classificadas como “minimamente invasivas” no sentido em que não implicam craniotomia (a abertura de uma “janela” no crânio); estas opções incluem a termoablação por radiofrequência, que pode ser feita durante a monitorização com registos intracerebrais (“SEEG”), a terapia intersticial térmica com laser ou a radiocirurgia. 

 

1.2. Modalidades paliativas

Em casos de epilepsia generalizada refratária, quando não é possível determinar com certeza o “foco” de uma epilepsia focal ou quando uma cirurgia ressetiva não é considerada segura (porque não é possível assegurar a preservação das áreas responsáveis por funções cerebrais importantes, por exemplo) a equipa multidisciplinar pode sugerir a realização de procedimentos paliativos, em que os objetivos são a redução do número e/ou intensidade das crises e aumento da qualidade de vida, sendo improvável uma cura definitiva.

 

1.2.1. Calosotomia

É uma cirurgia que se encontra normalmente reservada para doentes com epilepsias generalizadas de difícil controlo, particularmente quando as crises epiléticas resultam em quedas frequentes. Nesta cirurgia é interrompida uma via de ligação entre os dois lados do cérebro, impedindo assim a propagação da atividade elétrica anormal. Até 74% dos doentes têm um resultado favorável e cerca de 39% deixam de ter quedas súbitas relacionadas com a epilepsia. As complicações relacionadas com esta cirurgia são muitas vezes impercetíveis para o doente e tendem a diminuir ao longo dos anos. Podem, no entanto, persistir alguns problemas incapacitantes como dificuldade em falar ou escrever, apatia, problemas de memória, movimentos involuntários de uma das mãos entre outros.

 

1.2.2. Neuroestimulação: Estimulador do nervo vago (ENV)

O estimulador do nervo vago é um aparelho que aplica pequenas quantidades de corrente elétrica de forma intermitente no nervo vago, um nervo que permite a comunicação entre o cérebro e diversas estruturas torácicas e abdominais. É realizada uma pequena incisão relativamente superficial no peito e outra no pescoço para colocar este aparelho. Além da estimulação a intervalos regulares, este dispositivo vem acompanhado por um outro aparelho que os familiares e conhecidos podem utilizar para aplicar corrente adicional e assim ajudar a interromper uma crise epilética. Os ENV mais recentes também detetam acelerações do ritmo cardíaco, que podem ocorrer em associação com as crises epiléticas, e aplicar nessa altura uma dose de corrente elétrica adicional com o objetivo de diminuir a duração da crise. Os principais efeitos laterais são a rouquidão, tosse e desconforto cervical durante os períodos de estimulação; estes efeitos tendem a desaparecer gradualmente após a implantação. Os benefícios deste tratamento não são imediatos e podem demorar de alguns meses até dois anos a emergir. A maior parte dos doentes beneficia deste tratamento, com algum grau de redução da frequência e/ou gravidade das crises.  É improvável, contudo, conseguir remissão sustentada das crises.

 

 

 

 

 

Imagem 1: diagrama de um estimulador do nervo vago

 

1.2.3. Estimulação cerebral profunda do núcleo anterior do tálamo (ECP-NAT)

Este dispositivo é constituído por duas partes: (1) elétrodos que são colocados, através de um pequeno orifício feito no escalpe e crânio, numa região profunda do cérebro que é importante na propagação da atividade elétrica anormal, designada núcleo anterior do tálamo e (2) um gerador que é colocado sob a pele numa zona superficial do peito e que envia sinais elétricos aos elétrodos intracerebrais. A corrente elétrica é depois aplicada em intervalos definidos, com uma intensidade variável, definida pelo médico assistente. O objetivo é a redução na frequência e/ou intensidade das crises. Está indicado atualmente em epilepsias focais refratárias a tratamento com medicação, em doentes com 18 anos ou mais que não são bons candidatos a cirurgia ressetiva.  Tal como na estimulação do nervo vago, os resultados podem não ser imediatos, mas a longo prazo até 2/3 dos doentes podem se respondedores, no sentido de terem uma redução apreciável do número de crises. O procedimento é globalmente seguro, mas a implantação é mais complexa do que a estimulação do nervo vago. 

 

 

 

 

 

 

Imagem 2 – Diagrama de estimulador cerebral profundo

 

1.2.4. Dieta cetogénica

Determinadas alterações dietéticas podem funcionar como adjuvantes no tratamento de epilepsias de difícil controlo. É o caso da dieta cetogénica, uma dieta rica em gorduras (lípidos) e pobre em açucares (hidratos de carbono). Nesta dieta, a energia corporal passa a ser proveniente dos produtos de degradação da gordura, designados corpos cetónicos. Os corpos cetónicos têm diversas propriedades que lhes conferem atividade antiepilética.

Esta dieta é coordenada em consulta de nutrição onde será elaborado um plano alimentar e de suplementação adequado. Para assegurar que a dieta está a ser aplicada corretamente, e está a ter os efeitos desejados em termos metabólicos, pode ser necessária a medição dos corpos cetónicos no sangue ou urina, com recurso a um pequeno aparelho de fácil manuseamento, semelhante ao utilizado pelas pessoas com diabetes. As principais complicações do método são os efeitos gastrointestinais (obstipação, diarreia, náuseas e vómitos; tipicamente ligeiros e que desaparecem com o tempo), a perda de peso e o aumento transitório dos níveis de colesterol. A eficácia deste método varia consoante a causa da epilepsia, mas em termos gerais até 49% das pessoas podem ver as suas crises reduzidas para pelo menos metade e cerca de 13% podem ficar sem crises.

Outros esquemas dietéticos podem ser utilizados, como a dieta de Atkins modificada, em que a quantidade de hidratos de carbono é limitada a 20 gramas por dia. Já a dieta de baixo índice glicémico limita a quantidade de hidratos de carbono a 40-60 gramas, restringido os hidratos de carbono de elevado índice glicémico (i.e., que aumentam rapidamente os níveis de açúcar no sangue). Estes dois últimos tipos de dieta permitem uma maior flexibilidade em termos de refeições embora a eficácia seja ligeiramente inferior àquela reportada para a dieta cetogénica “clássica”.