30 de Março de 2020
O fácil acesso no mercado a óleos enriquecidos em canabidiol (CBD) e a perceção não fundamentada de que os produtos “naturais” poderão ser mais seguros e ter menos efeitos colaterais que os antiepiléticos (AE) convencionais tornou estes produtos muito populares. Contudo, não são obrigatórios os controlos analíticos desses óleos enriquecidos, deixando os consumidores sem proteção legal ou garantia da composição e qualidade do produto que estão a comprar. Atualmente, os produtos de CBD enriquecido não são sujeitos a testes obrigatórios ou a um regulamento para determinar indicações, dose diária, via de administração, dose máxima recomendada, embalagem, prazo de validade ou estabilidade. O conteúdo desses produtos é por isso altamente variável e, embora outros derivados além do CBD estejam presentes, o que poderá até ser benéfico, não há processo de saber quais são ou de os controlar. Em contraste, o CBD purificado na forma de Epidiolex® é um preparado farmacêutico estandardizado e sujeito a um mínimo de variabilidade.
Qual é o mecanismo de ação do CBD?
Apesar de o mecanismo de ação em seres humanos ainda permanecer desconhecido, a evidência atual sugere que a redução da excitabilidade neuronal aconteça através do antagonismo dos recetores GPR55, dessensibilização dos recetores TRPV1 e inibição do transporte de adenosina.
Quais são as propriedades farmacocinéticas do CBD?
A biodisponibilidade é de aproximadamente 6%, sendo muito variável pela extensa metabolização de primeira fase hepática pela CYP3A4. Esta pode ser aumentada até 4 a 5 vezes, quando ocorre ingestão simultânea de alimentos ricos em gordura. A capacidade de ligação a proteínas é de 99%, sendo apenas 1% farmacologicamente ativo após passar a barreira hemato-encefálica. Estas percentagens são dependentes da quantidade de albumina ou da presença de outros fármacos. O metabolismo ocorre hepaticamente, quer em metabólito ativo (7-hidroxi-CBD), quer nos metabólitos inativos (ácido carboxílico e glucuronóides) que são excretados por via fecal e urinária.
Em que síndromes epiléticas está aprovado o uso de Epidiolex®?
Com base em estudos controlados, o Epidiolex® parece ser uma opção de tratamento eficaz para doentes com síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa, com um perfil de efeitos adversos relativamente bom, devendo embora ser sublinhado que, nesses ensaios controlados, não parece ter uma eficácia superior à de outros fármacos, não representando por isso uma solução milagrosa para todos. Vem, contudo, acrescentar ao conjunto de fármacos já disponíveis para o tratamento dessas formas graves de epilepsia, uma nova arma, por vezes com benefícios substanciais.
Em que tipo de crises?
Dado o número de diferentes tipos de crises associadas às síndromes de Dravet, Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa, o CBD parece ter efeito favorável num largo espectro de crises convulsivas (o que é consistente com os dados pré- clínicos) mais do que em crises não convulsivas (Devinsky et al., 2017), nomeadamente clónicas, mioclónicas, mioclónico- astáticas e tónico-clónicas generalizadas. Deve, contudo, salientar-se que o efeito do CBD em tipos específicos de crises não é descrito em detalhe nos estudos controlados e serão necessários mais ensaios para responder a essa questão.
Que investigação está a ser feita para outras formas de epilepsia?
Outras formas de epilepsia intratável foram testadas em ensaios abertos (deficiência em CDKL5, síndrome de Aicardi, Dup15q e síndrome de Doose (Devinsky et al., 2018c), e mais de 20 ensaios estão atualmente a decorrer, referidos em ClinicalTrials.gov (incluindo síndrome de Rett e outras formas de epilepsia intratável). Apesar de estas síndromes coletivamente representarem uma pequena fração da população com epilepsia, é possível que, no futuro, possam levar a que o CBD ou outros canabinóides venham a ter indicação num maior espectro de síndromes epiléticas.
Que interações farmacocinéticas existem com outros AE?
As interações farmacocinéticas podem ser causadas por indutores enzimáticos usados frequentemente como a carbamazepina e fenitoína, ou inibidores enzimáticos como o valproato, estiripentol (usado na síndrome de Dravet) e o felbamato (usado na síndrome de Lennox-Gastaut). De salientar que o próprio CBD se encontra entre os inibidores enzimáticos.
Qual o impacto destas interações farmacocinéticas?
O impacto destas interações em cada indivíduo é difícil de predizer, sendo necessário questionar frequentemente o doente sobre a eficácia, tolerabilidade e adesão. Idealmente dever-se-ia fazer a medição da concentração sérica do CBD livre e otimizar o tratamento em cada doente. Atualmente não está definido o nível de concentração terapêutica, pelo que se sugere que para cada doente exista uma monitorização da concentração sérica de forma a delinear um intervalo no qual existe um equilíbrio ótimo entre eficácia e tolerabilidade.
Que interações medicamentosas já conhecemos?
Neste momento a interação medicamentosa melhor estudada é com o clobazam, uma vez que foi uma combinação comum em diversos ensaios clínicos (Geffrey et al.,2015). Níveis elevados de desmetilclobazam verificados quando usado em concomitância com CDB aumentaram o risco de toxicidade com fadiga, sonolência, ataxia e alterações cognitivas e comportamentais. Uma vez que clinicamente pode ser difícil de distinguir dos efeitos adversos do Epidiolex® (ver em baixo), recomenda-se a monitorização rigorosa dos níveis destes fármacos.
Muitos outros AE podem ter interações com o CBD pela sua farmacocinética, mas ainda são necessários mais estudos para detalhar a sua relevância clínica.
Quais são os efeitos adversos?
O Epidiolex® é geralmente bem tolerado, sendo a maioria dos efeitos adversos leves a moderados e melhorando com a manutenção do tratamento ou redução da dose.
Dados de segurança de estudos controlados demonstram efeitos dose-dependentes como a sonolência (22%), diarreia (19%) e anorexia (17%) (McCOy et al.,2018), principalmente no início do tratamento com doses superiores a 20mg/Kg/dia, sendo recomendada uma estratégia de “começar devagar” e “aumentar individualmente”. Efeitos adversos menos frequentes relatados foram vómitos, fadiga, perda de peso, pirexia e infeções respiratórias superiores. Estes efeitos foram consistentes em diversos ensaios clínicos (Devinsky et al., 2018a, 2018b).
Efeitos adversos considerados graves apareceram em cerca de 15% dos doentes. O mais frequente foi a elevação das enzimas hepáticas alanina transaminase (ALT) e aspartato transaminase (AST) quando usado em combinação com valproato, que ocorreu em 8% dos doentes. Este aumento foi reversível em 50% sem qualquer ação e nos restantes casos com a suspensão do CBD. É por isso recomendada a monitorização das enzimas hepáticas.
E no que diz respeito ao desenvolvimento ou à cognição?
Ainda não existe evidência direta de que o uso medicinal de derivados canabinóides para a epilepsia na infância seja prejudicial ao cérebro em desenvolvimento.
Não existem, no entanto, dados a longo prazo, sendo a informação atual baseada em ensaios randomizados, nas consequências da exposição pré-natal e no efeito do uso de cannabis por adolescentes. Estas fontes de informação apresentam um problema metodológico pelas diferentes dosagens, duração de exposição, efeito aditivo de outros fármacos ou substâncias, fatores genéticos, nível educacional… No entanto os dados a longo prazo apresentam um possível efeito negativo e duradouro na cognição e, em particular, nas funções comportamentais. No DSM-V (American Psychiatry Association, 2013, Gordon et al., 2013) está descrita a “cannabis use disorder”, que pode resultar do uso prolongado de cannabis sendo associada a psicoses, perturbações da ansiedade e aumento do risco de suicídio. Não é claro, e provavelmente é individualizado, o tempo e a quantidade de cannabis necessária para atingir esse distúrbio e pensa-se que a maioria deste efeito seja explicado pelo tetrahidrocanabinol (THC) mais do que pelo CBD, os dois componentes da cannabis.
Adaptado de:
Epilepsy and cannabidiol: a guide to treatment. Epileptic Disord 2020; 22 (1): 1-37
The proposed mechanisms of action of CBD in epilepsy. Epileptic Disord 2020; 22 (Suppl. 1): S10-S15
Pharmacology and drug interactions of cannabinoids. Epileptic Disord 2020; 22 (Suppl. 1): S16-S22
The role of cannabinoids in epilepsy treatment: a critical review of efficacy results from clinical trials. Epileptic Disord 2020; 22 (Suppl. 1): S23-S28 Adverse effects of cannabinoids. Epileptic Disord 2020; 22 (Suppl. 1): S29-S32
Long-term effects of cannabinoids on development/behaviour. Epileptic Disord 2020; 22 (Suppl. 1): S33-S37